02/04/09

ÉBANO E MARFIM


Durante o dia, a multidão em magotes estaciona
nos lugares do costume, o tempo passando
entre a ponta do cigarro e a anedota do vizinho.

O Senhor Gouveia também ama a solidão.
Estima ver-se só, para à-vontade largar o voo
das ideias, quer para o quadro cintilante
do passado, quer para a tela sombria do futuro.

A desoras, vagueando pelas ruas, vive
recordações e alimenta certas fés. Ainda hoje
aconteceu, após uma ceia moderada,
como o sono uma vez mais não resolvesse visitá-lo.

Nuvens negras, avalanches de carvão impelidas
de sudeste, rolam pelo espaço em desenhos espantosos.
A noite é de Outono adiantado. Ruas desertas,
onde ao acaso passeia o seu spleen provinciano.

Há um som habitual na janela ainda acesa
de uma casa despida de vizinhos: notas de piano
colidindo pelas raias da loucura, o compasso
sem expressão, como quem despeja um saco.

De pouco serve um aprendiz de pianista a martelar
àquela hora. O Senhor Gouveia muda de passeio.
O vento, afinado, assobia nas esquinas.

(Vítor Nogueira, in "Senhor Gouveia"/Averno)

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