SE TUDO ACONTECER COMO PREVISTO
Se tudo acontecer como previsto,
o Senhor Gouveia acordará
um pouco antes do almoço, mesmo a tempo
de descer as escadas e esperar pelo carteiro.
Se acaso receber correspondência,
há-de tirar o chapéu a uma senhora.
Se não lhe chegar nenhuma carta,
fará exactamente a mesma coisa.
Na vida como na escrita, o Senhor Gouveia
utiliza sempre a mesma rima. Os seus gestos
são alexandrinos medidos ao milímetro,
coisas dificilmente publicáveis
já em meados da década de cinquenta,
quando pela primeira vez tirou o chapéu
a uma senhora
(e nunca mais lho devolveu).
*
VARANDAS
A procissão dividiu a rua a meio,
como é costume fazer-se a uma noz.
Na varanda de Dona Joaquina, a colcha
mais bonita da cidade, peça antiga
de família, que em tempos lhe foi dada
para juntar ao enxoval.
Em meados da década de cinquenta,
o Senhor Gouveia e a Dona Joaquina
estiveram, vai-não-vai, para se entender.
Depois, enfim, aquele jeito de poeta,
aquele modo de tirar o chapéu
a uma senhora...E nunca mais se falaram
desde então, razões certamente ponderosas
que ninguém conhece ao certo.
Mas, no dia em que passa a procissão,
o Senhor Gouveia pode olhar, demorado,
a sua musa. Esperará por si, ainda hoje,
a solteira Joaquina? E até que ponto
era capaz de lhe dizer do seu desejo
(da maneira como o diz em sonetos
desde sempre guardados no armário)?
Entretanto, examina o velho busto
recortado pela colcha que jamais o acolheu.
(Vítor Nogueira, in "Senhor Gouveia"/Averno)
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