21/12/07

Um Natal de Poesia e Sonho


A casa onde nasceu
de
José Luís Peixoto


Rita Burmester (fotografia)



A mesa estava posta, mas a sala de jantar ainda estava deserta. Na lareira, dois pequenos troncos adormeciam numa cama de chamas brandas. As paredes altas da sala de jantar seguravam o peso de quadros com rostos sisudos de avós de avós que já ninguém conhecia. Pelas janelas entravam os sons da cidade. Por ser noite de Natal, havia menos carros nas ruas e, por isso, distinguia-se melhor as vezes em que o rugido de um motor se aproximava e afastava do silêncio da sala de jantar ainda deserta. Invisíveis, os passos da mãe foram firmes no tapete do corredor. Distinguia-se o som do vestido a tocar nas paredes e no chão. Entrou e contornou a mesa sem olhá-la porque olhava e sorria apenas para dentro de si. Aproximou-se da lareira e, com a ponta da tenaz, explodiu fagulhas nos troncos. As chamas animaram-se de uma nova força e ergueram-se quase até ao início da chaminé. Assim ardia também o entusiasmo que a mãe tentava esconder, mas que mostrava em gestos súbitos e num sorriso permanente.
Ao longe, a porta do quarto da filha abriu-se. De repente, a mãe passou as mãos pelo vestido, tentando arranjá-lo para fingir que não o tinha arranjado e estudou uma posição casual para fingir que não tinha estudado aquela posição. Os passos da filha eram lentos. No corredor, o som da armação do vestido raspava pelas paredes e arrastava-se pelo chão. Foi recebida pelo sorriso da mãe e pelas palavras "feliz Natal" ditas num tom infantil. Sem sorrir, a filha mexeu os lábios, mas não se ouviu mais do que duas palavras misturadas num único murmúrio imperceptível. Com pressa, a mãe sentou-se à mesa. A filha, de olhar baixo, sentou-se também.
Desde que, no final do Verão, tinha sido obrigada a vender a casa onde vivera sempre e onde nascera que a filha não conseguia sorrir. A mãe, como uma voz da consciência, explicou-lhe que era impossível aguentar todos os gastos. A filha sabia e entendia, mas os campos que rodeavam a casa eram uma parte gigante da sua vida. Nas árvores que se estendiam pela distância estavam todas as suas idades. Era na montanha que se erguia no horizonte dessa casa onde nasceu que depositava os seus sonhos. Também por isso, nunca mais conseguiu nem sonhar, nem sorrir. Passava os dias no quarto com as cortinas corridas, com a pele cada vez mais pálida e com os braços cada vez mais fracos.
A mãe segurou a sineta entre dois dedos e, com um ligeiro movimento do pulso ecoou a sua estridência pela casa. Passou um instante e, num crescendo, ouviram-se os passos rápidos da criada anã. Era a única que tinha continuado com elas. Tinha ficado por amizade, por gratidão e porque não tinha outro sítio para onde ir. A criada anã entrou na sala de jantar com a terrina da sopa e subiu a um pequeno banquinho para encher os pratos de sopa e de vapor. Enquanto comia, a mãe levantava brevemente o olhar e tocava o rosto da filha com ternura. Entre colheradas de sopa, de cada vez que a olhava, a mãe lembrava-se da filha noutros natais: quando tinha catorze anos, recebeu o seu primeiro vestido de crescida e, na manhã do dia de Natal, quando a mãe a ajudou a vesti-lo e quando assistiu à descida solene das escadas sob palmas e timidez; ou quando era ainda pequena e já corria pelos campos a recolher musgo e ramos de pinheiro porque queria ajudar em todas as decorações da casa; ou quando nasceu, tão pequenina, e era a única atenção da casa ou quando ficaram sozinhas e, pela primeira vez, houve silêncio na noite de Natal. As lembranças misturavam-se. A criada anã entrou com uma travessa de carne. Subiu ao banquinho, serviu-as e saiu. Por detrás do rosto da mãe sucediam-se memórias e pormenores. Lembrava-se do rosto da filha quando, na hora dos presentes, lhe colocava um embrulho no colo. Lembrava-se da imagem da filha com o cabelo em canudos sobre os ombros, sentada no chão da sala a brincar com bonecas novas. Lembrava-se da filha quando era feliz. Já não tentava disfarçar a avidez com que queria olhá-la.
Assim que a filha pousou os talheres sobre o prato e passou um ângulo do guardanapo pelos lábios finos, sem esperar pelos bolos ou pelas sobremesas que sabia estarem prontas na cozinha, a mãe pousou palavras sobre a toalha de mesa. Com uma voz feita com a suavidade do mesmo linho, disse: "tenho um presente para ti". A filha olhou-a surpreendida. O tempo em que recebia presentes parecia-lhe tão distante. Mas a mãe, com a maneira que tinha de falar-lhe quando ela ainda era criança, repetiu: "tenho um presente para ti". Então, como se a filha mostrasse que esperava receber um pequeno embrulho, a mãe disse-lhe: "para veres o presente, tens de ir à janela". Com um rosto que não conseguia imaginar o que poderia ser, a filha levantou-se e caminhou na direcção da janela. A mãe continuou sentada, à espera da sua reacção. A filha afastou as cortinas. Passou um momento. E ficou suspensa. Abriu mais olhos. Passou outro momento. E não tinha palavras nem para dizer a si própria. Depois dos vidros da janela, caía chuva miudinha sobre os campos. Uma noite de estrelas iluminava a terra e toda a distância das árvores até ao horizonte, até ao corpo imenso da montanha onde depositara os seus sonhos.


(Este é o Postal de 2007 das Quintas de Leitura - Um Natal de Poesia e Sonho).


1 comentário:

Aldina Duarte disse...

Festas Felizes
Assim na Terra
Como no Coração!

Até sempre!