Jorge Sousa Braga, aqui na companhia de João Gesta, regressará às Quintas de Leitura em 2008.
Sobre o seu último livro, O Poeta Nu, apresentado em 12 de Outubro, no Café "Piolho", João Gesta, o programador do ciclo, leu em voz alta o seguinte texto:
Não há lugar mais oportuno para fazer o lançamento de um livro do Jorge Sousa Braga do que o “Piolho”.
“O Piolho” é, e foi nos tempos do fascismo, um espaço de liberdade, um espaço de liberdade livre, como diria Rimbaud, de liberdade cor de Homem.
“O Piolho” foi, nos anos 70, o meu primeiro lar. Cresci nestas mesas ao som vaporoso e pavoroso da máquina dos cimbalinos e do abrir e fechar irritante da velha máquina registadora, agora embalsamada.
Foi aqui que o coração me pregou as primeiras partidas – apaixonei-me gravemente várias vezes, casei mesmo com uma bela comunista que conheci três mesas depois da minha. Aqui aprendi a sonhar e a conspirar em surdina. Fumei, às escondidas e nem por isso, os meus primeiros charros, defendi-me como pude, sem heroísmos, anonimamente, da polícia fascista, convivi com pessoas que, trinta anos depois, ainda admiro: o Manuel António Pina, o Manuel Resende, o Jorge Fiel, o Carlos Leite, o “Arturinho” la gauche – um bandido de quem continuo a gostar -, o Costa Macedo, o meu dealer espiritual Alfredo, o Militão, o João Botelho, o Mário Vaz e o Rui Reininho que, generoso e solidário, me ensinou que os homens não se querem bonitos.
Às mesas deste café li os primeiros livros de Lenine, Engels e Marx. Aqui aprendi que o Mao-Tsé-Tung não era flor que se cheirasse, que a Rosa Luxemburgo era uma gaja porreira, que o Trotsky era um teórico impoluto, antes de levar irremediavelmente com um sacho na cabeça, medida profilática patrocinada por Staline, esse sim, um refinado estupor.
Aqui li os meus primeiros livros de Herberto Helder, “A crítica doméstica dos paralelepípedos” de Nuno Júdice, livro artisticamente roubado na Unicepe e que transportei até ao “Piolho” debaixo de uma t´shirt que proclamava em letras garrafais: « Nem Deus, Nem Chefes».
Foi no “Piolho” que ouvi pela primeira vez falar de Revolução:
“Serão talvez precisas várias revoluções para que um dia deixe de haver pessoas razoáveis” – sábias palavras de Roger Gentis.
Aqui tomei contacto com as teorias situacionistas:
“A Revolução deixa de existir no instante em que é necessário sacrificarmo-nos por ela”.
Hoje, homem maduro, sou forçado a concordar com o Adolfo Luxúria Canibal: “a revolução é o remédio para os que sofrem de tédio”.
Foi, por fim, no w.c. do “Piolho”, pichado numa parede, que registei um dos maiores ensinamentos da minha vida, que ainda hoje me serve:
“Amar sem ser amado é como limpar o cu sem ter cagado”.
Bom… (momento de molhar o bico)
Foi também numa mesa do “Piolho” que, em 1982, descobri o Jorge Sousa Braga. Descobri-o através de uma bela edição da Fenda – “Plano para salvar Veneza” -, um livro comprado (100$00) pela Cristiana, a tal bela comunista, na livraria “Leitura”e veementemente recomendado pelo senhor Fernando Fernandes. No final da leitura fiquei com vontade de “beijar o Jorge apaixonadamente na boca”.
A jornalista Filipa Leal, numa notável entrevista no “das Artes das Letras”, perguntou ao poeta qual seria o plano para salvar este novo século. O poeta respondeu, sem hesitações:
“O plano para salvar o novo século acaba por ser a mesma coisa que eu dizia no «Plano para salvar Veneza», e tem uma só palavra: TERNURA. Ternura por aqueles que nos rodeiam, pelos animais, pelas árvores e pelas pedras.”
Jorge Sousa Braga é, antes de tudo, um poeta da natureza.
Prossegue ele na referida entrevista:
“Comecei a ler muito antes de ter aprendido as primeiras letras. Eu explico. Nasci numa pequena aldeia e quando era criança perdia-me nos campos e nos montes. Aprendi a ler os movimentos das folhas das árvores, o voo dos pássaros, a passagem das nuvens…”.
Jorge Sousa Braga é um poeta implicado. Implicado, sobretudo, com uma visão global do mundo: “Não me imagino só com pessoas à volta. Acho que também são precisos os outros animais, as pedras, as árvores”.
À boleia de António Ferro, digo-vos que o Jorge Sousa Braga é um “bêbado dos sentidos”, um poeta “enfarinhado de luar”. Jorge Sousa Braga cheira bem. Cheira a sol, a sul, a manjerona, malagueta, sândalo, cominhos, basílico, zimbro, oregãos, açafrão, caril, louro, estragão.
O Jorge Sousa Braga cheira a Whitman e a Cesariny. É um poeta intensamente livre. “Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido, mais perigoso. Quanto mais livre, mais capaz. Do cadáver de um homem que nasce livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá um escravo”. Aprendi isto com Cesariny e, também, com a poesia e com a convivência com o Jorge. O Jorge não troca a “liberdade” em “liberdades”. O Jorge escreve para a eternidade. O Jorge é um poeta subversivo.
(Houve alguém, aqui no “Piolho”, que me ensinou isto: revolução é voltar a ampulheta. Subversão é realmente outra coisa: é esmagá-la, eliminá-la.)
Repito:
O Jorge é um poeta subversivo e está sempre a surpreender-nos com as palavras que diz. Está sempre a esmagar a ampulheta:
“Toda a gente se revolta. Uma capacidade intrínseca da alma humana é a capacidade de nos revoltarmos. É fácil uma pessoa revoltar-se contra as barbaridades que nos são distantes, como as que acontecem presentemente no Iraque. Mas é mais difícil revoltarmo-nos contra as pequenas barbaridades do quotidiano. Acho que a DOÇURA pode ser uma forma de revolta, e às vezes mais eficaz do que algumas toneladas de bombas”.
Hoje, Jorge Sousa Braga voltou à carga, numa importante entrevista ao “JN”: “Lamento que a mediocridade tenha invadido os partidos instituídos e inundado as repartições e muitos centros de decisão. Mas não lamento o verde do Minho, o amarelo do Alentejo, o azul dos rios e do mar”.
Para terminar:
“O Poeta Nu” é um intenso e requintado fragmento de liberdade. É um livro absolutamente febril, que me levou ao sorriso, ao riso e às lágrimas.
“O Poeta Nu” é uma delirante viagem. “Desvenda-nos uma visão do mundo que poetiza todas as coisas”, como sabiamente escreveu Pedro Mexia.
Refiro os primeiros livros de Jorge Sousa Braga com um registo maldito, quase “underground”; “Os Pés Luminosos” onde são notórias as influências da poesia chinesa, japonesa e a estética do haiku; “A Ferida Aberta” onde o poeta deixa perpassar a sua experiência clínica; por fim, o volume novo, com o fascinante título “O lírio que há no delírio”, onde o autor dialoga com grandes mestres da pintura – Monet, Magritte, Frida Kahlo, Van Gogh, etc.
Todos estes livros agora reunidos, fizeram, vão continuar a fazer o seu caminho. E, como faz questão de realçar Jorge Sousa Braga, o caminho da poesia é sempre o coração do leitor.
“O Poeta Nu” é, em suma, um objecto belo, é um livro cheio de verdade, de subtil ironia, pleno de sentido de humor. E o Jorge sabe, como eu, que o humor é a mais eficaz maneira de dizer NÃO ao poder. Jorge, se dizes NÃO, é porque tens razão. (Que São Tzara esteja no meio de nós!).
O Jorge tem o vício da Poesia. Lê, escreve e traduz como respira. E arrasta-nos no seu vício – só somos capazes de parar quando snifamos a última linha dos seus poemas.
Termino agora e confesso-vos:
“Estou mesmo a precisar de uma injecção de essência de rosas”.
2 comentários:
Bem hajam os poetas assim.
Abraço à equipe
brilhante, joão gesta, brilhante os dois: joão e jorge. fica-se apaixonadamente salva por tanta TERNURA.
li o livro em três goladas.
abraços desta miúda para aí*
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