SONATA
O violoncelo encosta a cabeça ao teu ombro
e é um lamento ainda vegetal que lhe sai do sangue
quando o arco rasga o ar, o silêncio, a mão.
Fechas e abres os olhos, há gente a escutar,
as paredes curvam-se e estalam, tudo é frágil,
e a partitura é sempre um pouco além do olhar.
Os dedos levitam sua dureza sobre as cordas,
estremeces amarrada à vertigem da tua
própria queda - nisto se ergue a música.
Também tu não possuis trastos, tacteias
interiormente em busca das notas particulares
e do movimento inspirado.
Há uma demorada e subtil alquimia nesta sala.
E o violoncelo é o imóvel instrumento
da tua trágica, suave aparição.
x-x
DO CAIS
Todos os barcos partiram já
deste cais improvisado no abandono
das memórias queimadas, partiram sem velas,
e ninguém reconheceu o rasto incerto
do definitivo longe.
Só agora dou pelo peso do esquecimento.
A espuma embrulha-me com limos, espanto e sal.
E uma inviolável concha flutua na minha existência.
Apago as estrelas com a manga da absoluta solidão,
percebo que nenhuma luz me habita os olhos
- e fico cego diante do espelho.
Ninguém reconheceu que se morria.
(poemas de Vasco Gato, in "IMO"/Edições Quasi)
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