haverá talvez um poema
haverá talvez um modo de amanhecer
que revele nos olhos o secreto ardor
com que se levanta o trigo enorme.
haverá talvez um lago que a noite não toque
e de dia em dia, como ontem, como amanhã,
cante a mulher que ali foi ver nascer o filho.
haverá talvez um suor que não o do sacrifício
e com o qual a pele cintile como uma borboleta
que vem descendo o céu até à flor dos teus lábios.
haverá talvez uma fala onde nos poderemos encontrar
sem que a tua mão esqueça a minha, sem que o sorriso
esconda o vazio, uma fala que só possa e saiba dizer nós.
haverá talvez um poema em que o soluço aperte as veias
como o rio aperta o mar, um poema em que eu e tu
dormimos sobre o luminoso esplendor do universo.
x-x
dedos e dedos
voa comigo nos ombros da noite
enlaçados como dedos e dedos
na ternura completa das mãos.
inventemos asas até que nos
tenham como irmãos os pássaros
e as crianças nos persigam
pelo areal - o voo que é delas também.
acredita que o nosso olhar tocará um dia
o horizonte com tal força que a nossa palavra
ficará redonda, redonda como os ombros
desta noite em que te convido a descobrires
comigo o amor enorme que a maré nos tem
quando nos cobre os pés e nos obriga a nascer.
x-x
primavera primeira
estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera
é a primeira primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
- no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum
(poemas de VASCO GATO, in "Um Mover de Mão"/Assírio & Alvim)
Fotografia de Tiago Vieira
2 comentários:
Ainda bem que no muro da poesia da antiga pós-modernidade apareceu um poeta como Vasco Gato - poeta que tece a trama poetica - faz do verso revestido de metaforas o enredo do cotidiano e do nosso ser.
Portugal tem nos dado cada poeta. Primeiro o mestre Camões, Fernado Pessoa e suas outra pessoas, FlorBelas e seus belos e tragicos sonetos, nos deu o ultaromantico Bulhão Pato - o poeta das ameijoas, agora nos dá Vasco Gato. Que poesia lusitana - que versos.
Luiz Alfredo -poeta
Eu sou fã In-condicional da poesia portuguesa, de seus poetas, músicos, escritores e de toda forma de cultura literária de Portugal. Vasco Gato me emociona a cada verso, cada letra, cada criação. Vida longa ao nosso Poeta Vasco e a poesia Portuguesa.
Vânia Gurgel do Amaral.
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